sábado, 13 de março de 2010

Lançamento do livro - um trechinho de petisco!


Ruminando silêncios

Quando a solidão apertava, a melhor companhia da viagem era mesmo Chico Maria, vaqueiro responsável pela tropa de mulas. Um caboclo quieto, que também não esperava palavras gratuitas dos outros. Perto dele, o silêncio parecia bastante confortável.

De manhã, bem cedinho, ninguém nem ia acordar Chico Maria. Aliás, ninguém nem sabia onde tinha se aninhado para passar a noite. Chico Maria despertava junto com o espreguiçar dos primeiros passarinhos, quando o orvalho vira lágrima de folha. Aos “bom dias”, respondia apenas com um aceno de sobrancelha, e seguia escovando seu animal, retirando os pêlos que desgrudavam de ontem para hoje.

E quando os homens, com as línguas já excitadas pelos primeiros tragos de pinga, começavam a empunhar o berrante e chamar alto pela boiada, Chico Maria – em sua camisa vermelha que até parecia ter sido retirada da gaveta – já tinha agrupado a tropa de mulas, que pastava tranquilamente sob sua tutela.

“Bicho meu é tratado no silêncio”. Sem alarde, já estava pronto. Chico Maria seguia sozinho na frente da comitiva, guiando a boiada. Carregava sempre meia dúzia de laranjas para o café da manhã. Quando a boiada pegava o ritmo da viagem e não havia mais perigo de boi atrevido estourar, soltava as rédeas e amolecia a cintura, como quem concede uma dança ao lombo da mula. Então, retirava do fundo do alforje o primeiro fruto. Lustrava-o pacientemente na camisa vermelha, sem amassá-la. Com as grossas mãos, começava a descascá-lo cuidando para não ferir além da fibra esbranquiçada. E seguia, enfeitando com cascas de laranja o caminho para a boiada passar e deixar seu rastro de estrume. Com o fruto descascado nas mãos, esbarrava. Sem chamar, esperava minha aproximação para inaugurar o diálogo do dia: “tá servida?”. Partia a laranja em dois pedaços desiguais, e dosava o passo de sua mula para alcançar as minhas mãos. Na companhia de Chico Maria, nem era necessário o comentário sobre a doçura da laranja. Não se devia interromper o deleite, nem mesmo com palavras açucaradas.

Após sugar todo o suco, o homem buscava mais um fruto no alforje, lustrava-o e prosseguia descascando. Com o olho a vigiar a tropa de mulas, iniciava seu café da manhã.

Assim que me avistava dispensando o bagaço, aproximava-se novamente. “Aceita mais?”, perguntava, dando continuidade a nosso monossilábico diálogo.

No bolso, alertou, devia-se sempre levar um punhado de sementes de sucupira branca: “bom pra garganta, moça”. Chico Maria, que pouco falava, sabia bem o valor da palavra proferida. Por isso, quando se faziam necessárias, era bom que se estivesse preparado para dizê-las com maciez, sem roucuras de voz ou pensamento. Para ele, reza boa é feita no sem som. Cochichada no ouvido de Deus. Fé grande é aquela que dispensa retórica. Depois de algumas horas de viagem, Chico Maria, disposto também a cuidar de minha aflição em saber das coisas do sertão (a caneta sempre a rabiscar alguma informação no caderninho já avermelhado de pó), emparelhava sua mula ao lado da minha, como quem concede a oportunidade para uma prosa.

Sem alarde, passava a revelar alguns mistérios de sua terra. Contou até que já teve oportunidade de ficar rico: existe, por lá, “um livro de oração braba de ganhar dinheiro pra além do que se pode comprar”. “Mas eu não mexo com esse trem. Gente que faz isso aí não fica prestando mais. Tem de tudo e nada mais serve. Vai se enchendo de coisas e se apartando das pessoas, briga até mesmo com a família… Coisa feia de se ver”. E mais, o lugar em que o pacto foi feito, fica assombrado: “A porta bate sozinha, a luz acende sem a vontade de ninguém. Não presta.”

Como legítimo sertanejo, Chico Maria já teve também oportunidade de receber orações que são a base do estudo para se formar autoridade em feitiços, tal qual Miguel Sincero, “que benze até problema de dor de dente; a pessoa, inclusive, pode escolher se o dente ruim estoura pra fora da boca ou trata de se curar ali dentro mesmo”. E o “trem” é tão poderoso, que bom benzedor nem precisa ir até o local para fazer valer sua reza. Se o problema é infestação de cobra na plantação, é só benzer para o lado certo da propriedade. “Da casa dele mesmo, ele faz as orações e as bichas ficam tudo abobada, com pressa de sair do lugar. Eu mesmo já vi, uma vez, cinco delas fugindo de uma plantação”, garantiu. Em caso de berne na boiada, a reza também é tiro e queda. “É de um dia pra outro, nem precisa de remédio. Aliás, tem caso que é só com benzeção que resolve mesmo.” Mas Chico Maria não é homem pra querer botar medo em bicho peçonhento ou orquestrar pequenos milagres em boca de sertanejo com dor de dente. “Eu não sou desse ramo, não. Já tive até oportunidade. Mas a pessoa que mexe com isso fica isolada e com um olhado sempre diferente e esquisito sobre as coisas.” Chico Maria não tem intenção de domar os mistérios do mundo. Sabe que desconhecê-los, é uma forma de mantê-los para todo o sempre encantados.

E depois de adubar minha imaginação com os segredos do sertão, Chico Maria ganhava novamente o silêncio. Nem mesmo seu chicote resmungava com as mulas. Seguíamos sob o ritmo abafado do casco dos animais pisoteando a areia fina e seca. E, assim, passaríamos mais algumas horas ruminando silêncios.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Do tamanho do colo


Bom mesmo é caber em um colo. Desmoronar nos braços de alguém, sem nem ter de se preocupar em se agarrar ao pescoço. Desmantelar-se. Inutilizar, um a um, cada músculo do corpo até quase perder a forma de gente. Até ganhar moldura de colo.
Chegar tão perto a ponto de confundir qual dos dois corações é o seu. Não há melhor canção de ninar.
Se não aprendi a voar, o que me alenta é saber que um dia já fui do tamanho de um colo e vi o mundo centímetros acima sem ter asas. Pois é fato: não se pode ser plenamente com os pés no chão.
Por um colo, confesso, já até trapaceei. Lembro, algumas vezes, do pai cansado e arfante e eu fingindo meu sono profundo apenas para garantir aquele colo absoluto, desse sem nenhum enlace. A cabeça despencada, a boca aberta. Não há músculo que resista a um bom colo.
Além de corpo mole, birra é uma moeda forte nesses casos. Vale espernear até ganhar as alturas, só para ver um mundo mais confortável do alto de um colo.
E se há colo, é possível desistir de tudo a qualquer instante. Nem é preciso esperar para chegar em casa. Ali mesmo no supermercado, na rua, no elevador, é permitido não querer mais brincar de existir. Um colo aconchega qualquer derrota.

Hoje em dia, chego a me esforçar para caber em um colo. Espremo, espremo. Não cola: no colo, não cabe nenhuma contenção. Agora, só há espaço para a cabeça sobre as pernas do outro. O cafuné tenta consolar.


Este texto é dedicado às pessoas que ainda cabem em colos: Feliz Dia das Crianças!


Juliana Simonetti é jornalista, mas prefere fantasiar nas horas vagas (http://juemquedalivre.blogspot.com). Está em fase de produção de seu segundo livro (sobre o sertão mineiro de Guimarães Rosa) e há cerca de 20 anos não cabe mais em colos, mas sabe do poder dos ombros amigos.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Minha tragédia em um cachorro quente




Nasci tragicamente patética. O médico insistiu que era apenas questão de vaidade - aquelas duas voltinhas do cordão umbilical enroladas no pescoço. Penso se não era apenas para chamar a atenção. Como quem anuncia, mas não se joga da ponte.

Esquecer o lápis na primeira série foi um grande acontecimento em minha coleção de desequilíbrios ridículos. Eu, ainda rascunho de mim, corri ao banheiro. O lápis era maior do que eu: formiguinha aflita presa pelo ilusório risco de grafite. Mal sabia que toda minha estrutura emocional poderia estar amparada naquele milimétrico cilindro de madeira. E quando percebi que ele não estava mais por lá, o mundo desabou miudinho - grito de formiga - dentro da cabine do banheiro. O lápis, meu Deus, o lápis! Meu demônio tinha apenas 10 centímetros de altura e cabia em um pequeno estojo. A mãe foi chamada às pressas: a menina estava muito branca que nem pôde falar de seu fantasma durante os próximos dez anos.

Lembro também de minha mãe, de vestido verde, fechando a porta do carro vermelho, no dia em que ela me deixou. “Me deixou” dormir na casa da amiga, é claro. Mas, tratando-se da visão de uma trágica, de qualquer forma, me deixou e isso já se configurava mais um pequeno apocalipse existencial. Dormi lambendo as lágrimas do rosto: era triste e bonito aquilo de ela verde desaparecendo naquele vermelho. De vez em quando, minhas tragédias atingem dimensões estéticas: uma mis en cène da tristeza.

E assim, como em um melodrama de quinta categoria, fui ardendo em tudo: na ausência de um lápis ou em um vestido verde que some dentro de um carro vermelho. Hoje mesmo tive dó de mim enquanto comia sozinha um cachorro quente na padaria ao lado. Uma mulher de 29 anos que come um cachorro quente já me parece pateticamente triste. Uma mulher de 29 anos que come um cachorro quente sozinha enquanto lê Fernando Pessoa é de beirar o inconsolável. Colocar um pouco de mostarda e de catchup a cada mordida foi meu cuidado estético com a cena de meu drama particular. Hoje, minha tragédia coube em um pedaço de salsicha.

domingo, 17 de maio de 2009

Flores ao túmulo


Desculpe, ainda não deu para fazer a visita ao cemitério e levar as flores ao túmulo. Pra ser sincera, ainda tenho dúvidas se já consegui enterrar aquele susto entre as costelas que você me deixou. A minha parte da herança.
Também ainda não deu para sair dançar até acreditar que se deus existe, ele é bailarino. Pra ser sincera, perdi completamente o rebolado depois que você foi embora e ando escutando chorinhos no meio da tarde. E choro é bom deitado.


Ainda não deu para parar de doer. Mas, pra ser sincera, eu sempre doi. Bem antes de você.
Desculpe.
(Pintura de Munch)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Pelo menos três vezes por semana

Ele não podia ir embora. Havia a pequena árvore e a meia dúzia de besouros. Nem cinco, nem sete: uma árvore suficiente para seis. E assim, todo dia, deixava a cama às seis pelos seis.
A blusa bem esticada na cadeira. A pasta de dente criteriosamente espremida. A água no rosto. O pente no cabelo. O pão com geléia. Um sopro no leite para não derramar. O chinelo arrumado no tapete da porta. E a porta que se abre pelos seis.
Ele bem sabia que meia dúzia de qualquer coisa pode ser suficiente para uma vida. São seis motivos e uma árvore.
Depois de uma investigação minuciosa – atrás da orelha das flores, entre os dedos do caule, na cabeleira da folhagem – punha-se a fazer os cálculos. Retirava cuidadosamente os besouros excedentes e esmagava-os com as pontas dos dedos. Limpava o melado cintilante das mãos na grama.
E os chinelos voltavam ordenados para o tapete da porta.
Havia a pequena árvore e a meia dúzia de besouros e ele não podia ir embora. Às seis, pelos seis. Às seis, pelos seis. Às seis, pelos seis.

Um dia a amiga ligou chorando. Não havia mais árvore e os muito mais de seis besouros disputavam as últimas folhas ainda pintadas de cintilante. A camisa no chão. O tubo de pasta aberta. A torneira pingava. O fogão sujo. Ninguém para chorar o leite derramado. Nem sinal dos chinelos. Ele tinha ido embora.

Mas a amiga nunca pode ir embora. Há o homem sem os seis besouros e a pequena árvore. Nem muito, nem pouco: há o homem suficiente para se perder. E às seis, ela acordou e mandou-lhe um pequeno vaso de flores. “Querido, favor manter ao sol e molhar três vezes por semana”. Que era pra provar que o mundo ainda precisava dele. Pelo menos três vezes por semana.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Diário


O dia foi ter saído caminhar com o cachorro às 9h da manhã e se permitir comer algumas amoras no pé. Aquilo de tingir as pontas dos dedos de roxo a deixara feliz. Estava em jejum e se sentia imensamente realizada por inaugurar o dia com amoras. Colocava-se nas pontinhas do pé para alcançar a mais doce, cuidando para não deixar que nenhuma borrasse o chão. Afinal o dia era, porque amoras.


* * *
O dia quase não foi. Chovia. As amoras maduras pingaram no chão. Sangrou roxo o dia. O cachorro nem sequer saiu da casinha. E quando tudo quase já não era, a mãe percebeu a sua aflição: é preciso ter um bolo em dias de chuva. Ufa, o bolo! Ficou leve ao ver a clara se transformar em neve. O bolo dentro do forno crescia. Estufava o peito. Afinal o dia era, porque bolo de chuva.


* * *
O dia foi adiado para começar mais tarde. Não havia fato para arrancar-lhe da cama. O bolo já servido no café da manhã. As amoras se sendo sem sua atenção. Foi trabalhar. Voltou para a casa sem o dia estrear. De pijama, ainda procurou um fato. Pensou em escrever uma carta ou arrumar a cozinha para a mãe (usaria até bombril para ariar as panelas). Não se encontrou e foi dormir antes do dia acontecer.
Afinal muitos dias são, porque amanhã.


terça-feira, 9 de setembro de 2008